Ser mãe atípica é uma experiência que, com o tempo, foi se revelando com toda a sua complexidade. Quando a Marcella nasceu, há 37 anos, o mundo parecia não estar preparado para ela – e nem para mim, que era mãe muito jovem e, de repente, me vi imersa numa realidade que muitos julgavam pesada demais. Hoje, apesar de a minha filha morar no céu desde 2022, sigo vivendo cada dia com a certeza de que ser mãe atípica é, antes de tudo, aprender a encarar a vida de um jeito diferente, com mais coragem e autenticidade.
Pra quem não sabe, a Marcella tinha paralisia cerebral. Ela não andava, não falava e não enxergava como as outras crianças, mas esses detalhes nunca definiram quem ela era. Marcella sempre foi uma menina linda, com uma alegria contagiante que iluminava qualquer ambiente em que estivesse. Eu nunca vi na deficiência uma barreira, mas sim uma forma singular de viver que nos aproximava de uma verdade maior: a de que cada ser é completo do seu jeito.
No começo, confesso que os olhares curiosos e as perguntas impensadas me desafiavam. Frases como “tadinha dela”, “tadinha de você” ou mesmo perguntas insensíveis como “ela dorme direito?” e “por que ela precisa fazer fisioterapia se não anda?” eram comuns na minha rotina. Muitas pessoas não conseguiam enxergar além da diferença física e se perdiam nas próprias limitações para compreender a singularidade do ser humano que a Marcella representava. Aquele tipo de comentário nunca foi sobre a Marcella propriamente; era mais sobre a dificuldade que as pessoas têm de lidar com o que elas não conhecem ou não conseguem entender.
Com o passar dos anos, fui aprendendo a lidar com esses comentários e, principalmente, a transformar cada situação em uma oportunidade de esclarecer dúvidas e abrir os olhos de quem insistia em ver o “diferente” como algo negativo. Foi nessa caminhada que o termo “mãe atípica” começou a fazer sentido pra mim. Eu nunca tinha me identificado com essa expressão, mas hoje vejo que ela engloba não só a jornada de cuidar de uma criança com deficiência, mas também a de todos aqueles que se vêm obrigados a transpor barreiras invisíveis impostas por uma sociedade que, às vezes, ainda não sabe lidar com as diferenças.
A partir da convivência com a Marcella, aprendi que a verdadeira luta não era a batalha contra a deficiência dela – que nunca foi um obstáculo para a felicidade, mas sim contra o preconceito e a insensibilidade do mundo. Claro que houve momentos de constrangimento, de enfrentar olhares de pena e de ouvir perguntas insensíveis, mas também tive a alegria de ver sorrisos genuínos e palavras de apoio quando as pessoas conseguiam enxergar a verdadeira essência da Marcella.
Hoje, me consola saber que as coisas estão mudando. A discussão sobre a importância do respeito às diferenças ganhou espaço e, aos poucos, a sociedade tem se aberto pra compreender que cada ser tem seu ritmo, suas lutas e suas belezas. O termo “mãe atípica” ganhou relevância justamente por representar essa pluralidade de experiências. Assim como os filhos das mães atípicas são diferentes, essas mães também trazem na bagagem uma resiliência e uma combatividade que muitas vezes passam despercebidas. Ser mãe atípica é encarar a vida com leveza, mesmo quando o peso dos olhares e das expectativas externas parece querer nos esmagar.
Eu sei que pra muitas mães a rotina com um filho com deficiência pode parecer um desafio imenso. Não estou aqui pra dizer que a minha experiência foi sempre fácil – claro que lidamos com nossas dificuldades –, mas confesso que para mim o mais marcante foi ver a autenticidade da Marcella e a forma como ela transformava cada momento em um ensaio de alegria. O que muitos chamam de “luta” era, na verdade, uma maneira singular de viver e de demonstrar que o amor não se mede pelas capacidades físicas.
Cada dia com a Marcella foi um aprendizado. Aprendi a superar os preconceitos alheios, a transformar os momentos de silêncio em diálogos profundos e, principalmente, a celebrar cada pequena vitória. Quando alguém via a Marcella e dizia “ah, ela não faz nada”, eu sorria e lembrava que a verdadeira essência dela estava em cada gesto, em cada olhar e em cada risada que compartilhávamos. A Marcella não precisava andar pra nos mostrar que era capaz de nos ensinar o valor da vida; ela fazia isso simplesmente por ser quem ela era.
E é justamente essa autenticidade que eu quero compartilhar com todas as mães que, assim como eu, se veem nesse rótulo de “mãe atípica”. A jornada de cuidar de uma criança com deficiência tem seus desafios, sim, e não vou negar que existem dias difíceis. Mas também há dias em que a leveza de um sorriso, a cumplicidade de um olhar e a certeza de que estamos fazendo o melhor possível tornam tudo muito mais gratificante. O que aprendi com a Marcella é que a força de uma mãe atípica está em transformar cada obstáculo numa oportunidade de crescimento – tanto para ela quanto para aqueles que a cercam.
Embora a Marcella já não esteja fisicamente entre nós, sinto que ela continua presente em cada palavra, em cada gesto de carinho que ofereço às mães que precisem de um empurrãozinho pra seguir em frente. No espaço “Uma filha no céu”, que dedico exclusivamente a ela, encontro um refúgio onde posso reverenciar as memórias construídas e também dialogar com outras mães que vivem realidades semelhantes.
Nada do que vivi com a Marcella me transformou em alguém superior ou melhor do que as outras mães; apenas me ensinou a encarar as diferenças com mais humanidade e a valorizar o que realmente importa: o amor sincero e a capacidade de ver beleza naquilo que o mundo, por vezes, tenta minimizar. Sou orgulhosamente mãe atípica, e carrego comigo a certeza de que gestos de empatia e palavras de apoio têm o poder de transformar a realidade. O desafio é grande, sim, mas também é uma oportunidade ímpar de mostrar que ser diferente é, muitas vezes, a maior forma de beleza que alguém pode ter.
A trajetória com a Marcella me ensinou que o amor é a resposta para todas as adversidades, e que as mães atípicas possuem uma força incomparável. Hoje, quando relembro cada momento, me emociono não só pela saudade, mas pela certeza de que, mesmo nos caminhos mais difíceis, o essencial está no amor incondicional que somente uma mãe pode carregar.
E assim sigo, com o coração apertado por sua falta mas com a certeza de que sua luz continua a guiar meus passos. Compartilhar essa experiência é minha forma de dizer a todas as mães que não estão sozinhas. Que ser mãe atípica não é um fardo e sim um símbolo de coragem e de uma jornada repleta de amor, que, mesmo diante das adversidades, nos possibilita um aprendizado constante sobre a beleza de ser e de amar sem fronteiras. Se hoje encontro forças pra sorrir entre as lembranças, é porque a Marcella me ensinou que o amor verdadeiro se eterniza – e que, mesmo no silêncio da saudade, a nossa história ressoa como um hino de resistência e de esperança.
Que cada mãe atípica possa encontrar conforto na própria singularidade e que o mundo aprenda, com o tempo, a ver verdadeiramente a beleza de cada diferença. Pois, no fundo, ser diferente é o que nos torna únicos, especiais e absolutamente indispensáveis nessa grande jornada da vida.
Ufa! Muito intenso…