Memórias tecidas em amor

Sempre acreditei que os laços de família são aqueles fios invisíveis que nos unem de forma inexplicável e inabalável. Isso se tornou particularmente claro para mim por meio da história de Dona Helena, que não é minha avó, mas bem que poderia ser. Ela é avó de uma grande amiga minha, e eu tive a sorte de ser acolhida em sua família como se fosse parte dela. Dona Helena é o tipo de pessoa que irradia calor humano e generosidade. Aos domingos, sua casa se transforma em um refúgio de alegria e confraternização. A tradição é que todos os filhos, netos e até amigos — como eu — se reúnam para o almoço. Imagine uma mesa farta, cheia de pratos típicos que nos fazem sentir em casa só pelo aroma. Mas mais do que a comida, é o ambiente que nos faz querer estar ali. Esses almoços sempre foram ocasiões para compartilhar histórias, risadas e, às vezes, até lágrimas. Uma vez estávamos todos lá, e houve uma conversa sobre como as coisas mudaram ao longo dos anos. As fotos antigas passavam de mão em mão, e as imagens eram janelas para memórias preciosas. Esse tipo de partilha fortalece os laços de uma maneira que é difícil de descrever, mas fácil de sentir. Uma das experiências mais marcantes que vivi com a família de Dona Helena foi durante uma crise. Seu neto, João, sofreu um grave acidente de carro que o deixou hospitalizado por meses. Foi um período de incertezas e desafios, mas também de união e força. Fiquei impressionada ao ver como cada membro da família se prontificou a ajudar. Revezavam-se nas visitas ao hospital, organizavam as tarefas do dia a dia, e até aquelas responsabilidades que geralmente passam despercebidas. O apoio à família de João não veio apenas da obrigação, mas de um amor genuíno e solidariedade que transcendem qualquer dificuldade. Ver a maneira como eles se uniram me ensinou muito sobre a verdadeira força dos laços familiares. Dona Helena, mesmo nos momentos de maior preocupação, não deixava de preparar o almoço de domingo. Ela dizia que, mais do que nunca, era importante manterem-se juntos e em oração. E assim, a comida servia para nutrir o corpo e fortalecer o espírito. Recentemente, a vida deu mais uma volta inesperada. Dona Helena está enfrentando o desafio do Alzheimer. A casa não tem mais aquela alegria, porque ela também não a tem. Ela já não se lembra bem de mim, mas sei que, no fundo, essas memórias permanecem preciosas. A família continua unida, com filhos, noras, genros e netos se revezando nos cuidados. Dona Helena passa por este período difícil cercada de carinho e dedicação. Isso me faz refletir com profundidade sobre o fim da vida. Assim como as folhas que caem no outono, naturalmente deixamos partes de nós para trás, nutrindo o solo de quem vem depois. A história alimenta-se do amor e das lembranças e, especialmente, das lições de união e resiliência que Dona Helena nos deixou. Ela nos ensinou, sem saber, que não é a memória que mantém o amor vivo, mas o sentimento e os gestos diários de cuidado. Pessoalmente, essa vivência me fez valorizar ainda mais minha própria família. Tenho procurado estar mais presente, cultivar relações mais fortes e nunca deixar de expressar meu amor por eles. Afinal, são essas conexões que nos ancoram nos momentos de incerteza e nos elevam nos momentos de alegria. Se há algo que a história de Dona Helena me ensinou, é que os laços de família são a verdadeira força que nos sustenta. Mesmo nos dias mais escuros, o amor e a união são as luzes que nos guiam de volta ao caminho da esperança. Eles são uma fonte constante de amor, apoio e segurança, algo que todos precisamos em nossas vidas. Esta é a minha humilde homenagem a ela, que, com seu jeito caloroso, continua a nos unir, inspirar e fortalecer.
Nosso corpo diz quem somos

A comunicação é uma habilidade fascinante e multifacetada que vai muito além das palavras que pronunciamos. Entre os aspectos mais intrigantes está a linguagem corporal, ou comunicação não verbal, que desempenha um papel importante nas interações humanas. Cada gesto, olhar ou postura carrega significados que podem enriquecer a troca de informações ou, algumas vezes, criar mal-entendidos. Um estudo clássico conduzido pelo pesquisador Albert Mehrabian, em conjunto com Morton Wiener e Susan Ferris na Universidade da Califórnia, em 1967, trouxe uma visão reveladora sobre os componentes da comunicação. Segundo Mehrabian, na transmissão de emoções e atitudes, a comunicação é composta por 7% de palavras, 38% de tom de voz e impressionantes 55% de linguagem corporal. Embora o estudo tenha foco na comunicação de emoções, ele revela a vasta influência que a linguagem não verbal pode ter. A linguagem corporal é a expressão do nosso ser interior através do físico. Somos constantemente envolvidos por pistas não verbais: um sorriso que expressa simpatia, um cruzar de braços que grita desconforto ou até mesmo um silêncio que, por incrível que pareça, pode ser ensurdecedor de tanta informação que transmite. A própria definição de linguagem corporal abrange gestos, expressões faciais e posturas. A modelo Gisele Bündchen nos mostra que o corpo não se limita a uma ferramenta ocasional de comunicação, mas pode ser elevado à arte. Sendo uma mestra em comunicação não verbal, ela transmite mensagens com precisão e impacto, encaixando cada movimento e expressão para se conectar profundamente com o público. Ela simplesmente se comunica com o corpo. Nossa linguagem corporal diz muito sobre quem somos. Muitas vezes, nosso corpo fala antes mesmo da nossa consciência alcançar, revelando emoções e intenções ocultas. Em reuniões profissionais, um aperto de mão firme pode projetar confiança, o contato visual demonstra interesse, e uma postura ereta transmite autoridade. O valor real desse conhecimento está em nosso potencial de aprendizagem consciente. Ao planejar intencionalmente nossa postura, movimentos e olhares, podemos garantir que a mensagem transmitida se alinhe à intenção desejada. Não devemos subestimar essa parte sutil, mas poderosa, da comunicação. Olhando por uma perspectiva mais ampla, a linguagem não verbal potencializa nossas relações pessoais e profissionais. Enquanto palavras têm o poder indiscutível de deter conteúdos informacionais, a linguagem corporal cimenta o subtexto emocional desses diálogos, a necessidade fundamental de empatia e conexão mútua. Quando bem dominados, os gestos complementam e solidificam nossos discursos, validando o dito e atraindo e mantendo a atenção dos ouvintes. No entanto, devemos também estar alerta ao fato de que cada recanto cultural interpreta a linguagem corporal à sua maneira particular. Gestos que nos são cotidianamente comuns podem ter significados totalmente divergentes em outras culturas. Com o mundo cada vez mais globalizado, cultivar uma maior sensibilidade intercultural pode aprimorar nossa prontidão em comunicação não verbal. E por isso, é sempre possível (e recomendado) aprender e treinar essas habilidades. Observar atentamente as reações das pessoas a nossos gestos pode oferecer uma perspectiva sobre nosso próprio comportamento de comunicação não verbal. A prática contínua dessa percepção vai nutrir e fortalecer a capacidade de refinar nossa linguagem corporal, dotando-nos de uma estratégia poderosa e autoconsciente de comunicação. Ainda que as palavras sejam poderosas ferramentas narrativas, a verdadeira arte da comunicação reside no equilíbrio entre o discurso verbal e o não verbal. Desta forma, criamos um espaço para que gestos somem-se a cada frase, elevando a interação a uma experiência rica e completa. A importância da linguagem corporal não pode ser subestimada. Esta forma de comunicação afeta intensamente nossas conexões e a clareza de nossas mensagens, quer ao transmitir empatia e compreensão, quer ao autenticar segurança e presença. Prestar atenção à comunicação não verbal tem o potencial de transformar nossas interações, aumentando significativamente o impacto daquilo que desejamos transmitir. Tire um momento em um dia atarefado para observar suas palavras silenciosas. O que seu corpo está dizendo? Ao captar as nuances desses sinais, você inicia um diálogo interno e com o mundo. Assim, com tempo e prática, você ganhará autoconhecimento e desenvoltura que transcendem vocalização, inspiradoras e sólidas características encorpadas num mar de vozes compartilhadas. Explorar a linguagem corporal oferece-nos uma visão privilegiada ao verdadeiro diálogo interior que cada um de nós possui. Este corpo de palavras não ditas fala por nós muitas vezes sem ser notado, influenciando o mundo ao nosso redor de forma inequívoca e extraordinária. Invista tempo e atenção nessa linguagem universal e note seu impacto nas relações diárias.
No coração, pra sempre

Demorei certo tempo para entender o sentido da expressão “saudade eterna”. É uma expressão corriqueira, que nunca me chamou muita atenção. A vida da gente é repleta de situações comuns, às quais só damos real importância quando experimentamos. Foi com a morte da Marcella que “saudade eterna” ganhou significado para mim. É simples e difícil. Simples porque é literal, aquela saudade que vai me acompanhar pra sempre, e difícil porque, pra sentir essa saudade, é preciso perder alguém. Passaram-se as festas de fim de ano e o aniversário do meu pai. Foram dias intensos, de muita alegria, com a família toda reunida. É emocionante ver a família junta e, felizmente, nessa época todos nos reunimos, ninguém falta às comemorações. Exceto ela. É quando a saudade mais aperta. Criei uma capa que me ajuda a compreender que, em razão de sua condição, era natural que a Marcella partisse cedo. Então, desde o início, sempre aceitei. Mas daí a naturalizar a ausência há uma distância enorme, que não sei se quero percorrer. Perder um filho causa uma dor inigualável; por isso, entendo quando as pessoas me dizem que tenho que seguir em frente, aceitar, deixá-la partir. Eu deixei e estou bem quanto a isso, o que não quer dizer que não penso mais nela, que não sinto uma pontada de dor quando ela não está presente nas festas… Entendo a reação das pessoas, porque dificilmente alguém que não passou e continua passando pelo luto de um filho saberá como é. Marcella está em paz, eu sei. Assim como sei que ela viveu o tempo dela, como tinha que ser. E mesmo sabendo disso, ainda penso nela todos os dias e sinto a falta dela todos os dias. Não dá para explicar, só dá para sentir. Ela me ensinava sobre amor incondicional e perseverança. Cada sorriso sem palavras, cada olhar de compreensão, mesmo nas suas limitações, falava muito sobre o brilho interno que ela carregava. Vivemos momentos preciosos que estão gravados na minha memória, e que revivo com carinho nas noites silenciosas, quando a saudade se faz mais presente. Os desafios que enfrentamos juntas apenas consolidaram nossa ligação. Marcella me trouxe uma força que eu não sabia possuir até então. O aprendizado era mútuo. Enquanto cuidávamos dela, ela também cuidava de nós. Era impossível não aprender com a leveza, a aceitação e a resiliência que ela continuamente nos mostrava. Vejo ecos dela em cada canto da casa, nos lugares que frequentemente visitamos, nas músicas que ela gostava de ouvir repetidamente. O tempo pode suavizar as arestas da dor, mas é na permanência dessa “saudade eterna” que encontro a delicadeza das lembranças. Hoje, escrevo para testemunhar a marca que ela deixou. Pode parecer que a missão dela foi breve, mas em cada instante que compartilhamos, ela conseguiu transcender o tempo e nos deixar lições que vamos carregar pela vida. Viver sem a presença física da Marcella é uma prática contínua de aceitação. Continuo aprendendo a integrar sua lembrança ao meu cotidiano, sabendo que a dor da saudade é um tributo ao amor que permanece. Com o tempo, refaço minha trajetória, com gratidão por termos tido a Marcella em nossas vidas, transformando o que poderia ser vazio em um espaço preenchido de amor eterno.
Guardião de lembranças

Desde sempre eu e meus irmãos o chamamos de Paim. Assim mesmo, com “m” no final. E não “Painho”. Não sei por quê, mas é assim o nosso jeito. Meu pai completa 94 anos neste mês, e isso é motivo mais do que suficiente para eu escrever sobre ele, algo que tô querendo fazer desde que criei o blog. Paim é uma pessoa simples, que criou bem os filhos e basicamente viveu para a família. O seu pai morreu quando ele ainda era um bebê, e às vezes penso que essa ausência pesou tanto que ele escolheu ser pai quase em tempo integral. Juntos, ele e minha mãe fizeram da nossa casa um verdadeiro lar, para onde a gente sempre quer voltar. Somos cinco filhos, todos já passamos dos 50 anos, e até hoje dizemos “lá em casa” para nos referirmos à casa deles. Sou muito feliz na minha casa, com a família que construí, mas a casa dos meus pais continua sendo a minha também, um lugar onde me sinto bem e sou acolhida com amor. Então, tenho a felicidade de dizer que tenho duas casas. Até os dias de hoje, os amigos são bem recebidos por lá, mesmo que a gente não esteja por perto. E chegar na “minha casa” significa ter que responder imediatamente a uma pegadinha que Paim faz com todo mundo que vai lá: quanto é 7, 7, 14 com 10? Usei vírgulas para facilitar para você. Por favor, deixe sua resposta nos comentários. Será que vai acertar? Ele trabalhou por anos no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e, de tanto contar gente, pegou gosto por operações matemáticas. Era ele quem estudava conosco quando estávamos no ensino fundamental. É um contador de histórias, das suas histórias. Fala com alegria das muitas cidades que conheceu por causa dos recenseamentos nos quais trabalhou. Órfão muito cedo, foi criado com a ajuda do avô, João Machado. Até hoje meu pai fala do avô com um carinho tão grande que parece a criança que um dia foi. Eu e meus irmãos passávamos tanto tempo com ele que adquirimos o hábito de usar o mesmo tratamento que ele usava com as pessoas: compadre Zequinha, compadre Dé… A gente repetia como se os compadres fossem nossos. Não sei por que razão tínhamos mais medo dele do que da minha mãe, apesar de ele ser manso até dizer chega. Graças a ele, eu nunca apanhei da minha mãe (rs). Todas as vezes que isso estava para acontecer, ele chegava bem na hora e impedia. Eu juro! Ele chegava no momento certo, feito um anjo da guarda. Até hoje minha mãe se lembra que nunca me bateu por falta de oportunidade. Inteligente, educado e muito querido nas três cidades que fazem parte da nossa infância: Turmalina, onde ele nasceu; Virgem da Lapa, para onde foi trabalhar no IBGE, onde conheceu minha mãe, se casou e teve os cinco filhos; e por fim, Minas Novas, para onde toda a família se mudou há 50 anos. É brincalhão e quer muito viver até os cem anos. Em 2011, quando completou 80 anos, fizemos uma festa para ele. Somos católicos e, antes da comilança, teve uma celebração religiosa. Ao final, o padre pediu que ele dissesse algumas palavras. Sem cerimônia, ele pegou o microfone, agradeceu a presença de todos e convidou para o seu centenário. Tem um orgulho imenso de ser o mais longevo dos homens da família Machado. Minha avó, mãe dele, viveu 100 anos. Então, penso que ele também chega lá. Espero e agradeço a Deus por ele estar tão bem. Com mais de 90 anos, ele não é mais o mesmo. Está no inverno da vida. Anda meio impaciente, frequentemente esquece algo, mas ainda transmite o respeito de sempre. Tem andado muito sensível também. Lembra do avô e dos tios que ajudaram minha avó na sua criação e chora. Passa muito tempo na sala de televisão, conversa muito menos do que antes, mas experimente dar atenção a ele. As lembranças vêm como enxurrada. E como ele gosta de falar do passado! A saúde? De ferro. Não parece a idade que tem. Quis fazer um retrato do meu pai aqui e acabei me emocionando. Passa um filme na cabeça ao lembrar de tantas histórias boas. Deve ser bom chegar a uma idade tão avançada e ser lembrado só por coisas boas. Quero ser como meu pai.
A Crase

Um encontro de precisão gramatical A crase é um dos muitos fenômenos intrigantes da língua portuguesa. Ela não é só um acento, é a fusão de dois elementos gramaticais: a preposição “a” e o artigo definido feminino “a”. Este encontro é representado graficamente pelo acento grave (`), resultando em “à”. No entanto, sua aplicação exige atenção e conhecimento das regras, pois ela não aparece aleatoriamente. Quando a crase ocorre Antes de substantivos femininos A crase é obrigatória quando a preposição “a” se une ao artigo “a” antes de um substantivo feminino. Exemplo: Fui à escola. Aqui, “a” (preposição) + “a” (artigo) + “escola” (substantivo feminino) = à escola. Dica simples: Substitua o substantivo feminino por um masculino. Se aparecer “ao”, há crase. Fui ao cinema. → Fui à escola. Antes de Locuções Femininas Quando a expressão indica lugar, tempo ou modo, e é feminina, a crase é necessária. Exemplos: Chegamos à noite. (a + a noite = à noite) À beira do rio. Com pronomes demonstrativos A crase também ocorre antes de “aquele”, “aquela” e “aquilo” quando há a preposição “a”. Exemplo: Refiro-me àquela situação. (a + aquela = àquela) Com expressões de tempo Quando indicamos horas, a crase é obrigatória em expressões que contêm um artigo definido. Exemplo: A reunião começa às 15h. (a + as 15h = às 15h) Quando a crase não ocorre Antes de substantivos masculinos Como não há artigo feminino antes de palavras masculinas, a crase não ocorre. Exemplo: Fui ao parque. (a + o parque = ao parque) Antes de verbos Verbos não são precedidos por artigos, portanto, não há crase. Exemplo: Ela começou a estudar. Antes de pronomes pessoais Pronomes como “ela”, “nós” e “você” não exigem crase. Exemplo: Entreguei o livro a ela. Casos especiais: quando a crase é opcional Antes de nomes próprios femininos A crase pode ser usada ou não, dependendo da intenção do autor e do uso do artigo. Exemplo: Refiro-me a/à Maria. Antes de palavras no plural A crase é opcional em alguns casos, especialmente quando a preposição “a” é usada de forma generalizada. Exemplo: Dedicou-se a/às causas sociais. Dicas práticas para dominar a crase Teste da substituição Substitua a palavra feminina por uma masculina. Se aparecer “ao”, use crase. Exemplo: Fui ao mercado. → Fui à feira. Teste da preposição Pergunte-se: “Preciso da preposição ‘a’ aqui?” Se a resposta for sim e a palavra for feminina, use crase. Memorize as expressões fixas Algumas expressões, como “à toa”, “à vontade” e “às pressas”, sempre levam crase. A crase é como um convidado exigente: ela só aparece quando todas as condições estão alinhadas. Leitura, prática da escrita, atenção e tempo, ajudam a torna-la uma aliada na construção de textos de boa leitura. E, como você bem sabe, a língua portuguesa é um universo rico e cheio de nuances. Dominar a crase é apenas um passo nessa jornada.
Ouça o Silêncio!

Vivemos em um mundo repleto de sons e estímulos constantes. O barulho do trânsito, as notificações incessantes do celular, a música de fundo em quase todos os lugares. Às vezes, parece que o silêncio se tornou uma raridade, um luxo que poucos se permitem desfrutar. Mas quando encontramos esses preciosos momentos, descobrimos um espaço onde podemos realmente nos conectar com a gente mesmo, uma experiência verdadeiramente introspectiva. O silêncio tem uma maneira única de nos convidar a pausar e refletir. Ele nos oferece um momento de introspecção, uma oportunidade para nos afastarmos do caos e da correria do dia a dia. É nesse espaço silencioso que podemos ouvir nossos próprios pensamentos, entender nossas emoções e encontrar clareza. Passei a prestar atenção ao silêncio e entendê-lo de outro jeito quando comecei a meditar. Tive muita dificuldade para aprender a meditar. Preciso abrir um parêntese e dizer que sou ariana. E não que a astrologia seja algo presente na minha vida, mas sou daquelas muito ativas e, de fato, não tenho aquela qualidade que dizem faltar aos arianos: a paciência. Nasci sem, fazer o quê? Então, meditar foi difícil. Eu não encontrava a posição mais confortável, não me concentrava em uma coisa específica… Foi um exercício de paciência que tive que desenvolver e, para minha grata surpresa, quando estava meditando de verdade, percebi que ele, o silêncio, estava ali. E como ele é reconfortante, como comunica tanta coisa… Na semana passada, numa manhã bonita depois de uma noite inteira de chuva, sentei para meditar. O sol estava começando a aparecer, e o mundo ao meu redor ainda estava despertando. Naquele momento, o silêncio era quase palpável, uma presença suave que me envolvia. Foi um verdadeiro refúgio para minha mente e minha alma. Apreciar o silêncio não significa apenas estar em um lugar sem som. É sobre estar presente no momento, permitindo que a mente descanse e o coração se acalme. É sobre encontrar beleza na simplicidade e na quietude. Quando nos permitimos abraçar o silêncio, descobrimos uma nova forma de comunicação – uma que não requer palavras, mas que fala diretamente ao coração. Muitas vezes, associamos o silêncio à solidão, mas ele pode ser uma companhia maravilhosa. Ele nos ensina a estar confortáveis em nossa própria presença, a encontrar paz dentro de nós mesmos. O silêncio nos lembra que não precisamos sempre preencher o vazio com palavras ou ações. Às vezes, é no vazio que encontramos as respostas que procuramos. A chegada de um novo ano é um momento perfeito para refletir sobre as lições aprendidas e os momentos vividos. O silêncio pode ser nosso guia nessa jornada, ajudando-nos a fechar ciclos e a abrir espaço para novas esperanças e sonhos no ano que se inicia. Que possamos encontrar no silêncio a renovação necessária para abraçar o futuro com serenidade e gratidão. Convido você a buscar momentos de silêncio em sua vida. Pode ser durante uma caminhada matinal, enquanto aprecia uma xícara de chá ou simplesmente ao desligar as distrações e respirar fundo. Deixe que o silêncio revele suas próprias histórias e lições. Em um mundo tão barulhento, a arte de apreciar o silêncio é um presente que podemos dar a nós mesmos. E, ao fazer isso, descobrimos que ele tem muito a nos dizer.
Marcella e o fotógrafo

Durante toda a vida, Marcella enfrentou dificuldades devido à sua deficiência. Como já mencionei em artigos anteriores, ela tinha paralisia cerebral e viveu por 34 anos, superando muitas limitações. Nos anos 1980, quando ela nasceu, as barreiras de acessibilidade eram ainda mais desafiadoras do que as de hoje, e o preconceito fazia parte do nosso cotidiano. Naquela época, era comum que pessoas na condição dela fossem escondidas por suas próprias famílias. Nunca entendi o porquê. Ao contrário, sempre acreditei na importância de Marcella estar presente, visível e incluída. Marcella não andava, não falava, e sua capacidade cognitiva era considerada baixa. Mas aqueles que verdadeiramente conheciam sua essência percebiam que ela tinha uma audição aguçada e prestava atenção nas conversas ao seu redor. Ela não enxergava, mas sentia, de alguma forma, a reação das pessoas. Sempre que a apresentava a alguém, ela retribuía o cumprimento à sua maneira: se fosse acolhedor e genuíno, ela sorria; se houvesse estranheza ou resistência, ela reagia com incômodo e rigidez muscular. Lembro-me de um episódio emblemático e, de certa forma, engraçado. Um fotógrafo bateu à nossa porta oferecendo ensaios fotográficos de crianças, uma prática comum naqueles tempos. Ao saber que havia uma criança em casa, ele veio rapidamente, como quem acha uma mina de ouro. Quando trouxe Marcella à sala, sua animação rapidamente se transformou em espanto. Parecia que ele havia encontrado algo muito espantoso na sala de estar. Ele queria que ela se encaixasse em um padrão de “normalidade” que simplesmente não era possível para ela. Quando ele perguntou se havia outra criança, a filha da cuidadora de Marcella, Isabel, que morava conosco, entrou na sala. Seus olhos brilharam, mas eu insisti: o ensaio seria da Marcella. Isabel poderia participar, mas o foco deveria ser minha filha. Desanimado, ele continuou a fotografar, mas sua decepção era evidente, e Marcella, percebendo isso, decidiu que era hora de mostrar seu talento. Ela não cooperou, resmungou, caiu para o lado, salivou – talvez sua maneira de dizer: “Se você não pode me aceitar como sou, eu também não vou facilitar seu trabalho!” Isabel entrou em cena e, por um momento, Marcella se animou, mas a tensão permaneceu no ar. O fotógrafo prometeu ligar em 15 dias para a entrega das fotos, mas 30 anos se passaram e ele nunca o fez. Talvez ele ainda esteja esperando que Marcella envie um cartão postal com suas fotos “não convencionais”. Esse episódio permanece vivo em minha memória, como um dos muitos momentos em que tive que lutar para garantir que Marcella fosse tratada com o respeito e a dignidade que ela merecia. Eu me tornava uma leoa nesses momentos, defendendo-a com todas as forças. Marcella, por sua vez, surpreendia ao vencer suas limitações e demonstrar seu próprio incômodo com essas situações. No final, essas histórias nos faziam rir, e meus irmãos mais novos, que moravam conosco em Belo Horizonte, compartilhavam dessas risadas e da evolução da sobrinha. Nesta época de Natal, quando refletimos sobre o que realmente importa, lembro-me de como Marcella nos ensinou a encarar a vida com leveza e humor, mesmo nas situações mais complicadas. Afinal, como ela nos mostrou, às vezes a melhor defesa é um bom e velho sorriso travesso.
Não era uma bolinha de gordura

No final de 2019, recebi a notícia que ninguém quer ouvir: um diagnóstico de câncer de mama. Foi um momento devastador. O estigma que cerca o câncer, apesar dos avanços nos tratamentos, ainda carrega um peso imenso, trazendo consigo um medo que não sei explicar. Um ano antes, notei uma pequena e dura bolinha no meu tórax. Pensei que fosse apenas uma bolinha de gordura, algo inofensivo, e não dei importância. Meses depois, numa ida à praia, percebi que, após tomar sol, a bolinha estava mais evidente. Ainda assim, minha mente insistia que não era nada sério. Foi apenas durante uma consulta da minha filha Ana com a dermatologista que mencionei casualmente: – Doutora, tira essa bolinha de gordura pra mim. Ela sugeriu: – Faz uma ultrassonografia primeiro, pra gente tirar com segurança. Vou dar o detalhe pra fazer um alerta. Depois disso, eu não fiz o exame imediatamente. Devo ter ficado com o pedido guardado por mais uns três meses. Quando finalmente realizei o ultrassom, sem qualquer preocupação, fui pega de surpresa pelo médico, que me disse uma frase que não esqueço até hoje: – A senhora precisa mostrar esse exame ao seu médico e provavelmente vai precisar de cirurgia. Foi necessário tudo isso acontecer pra eu começar a entender que aquilo poderia ser um câncer. Abri o exame e li a sigla BI-RADIS. É uma espécie de classificação, que padroniza laudos de imagem das mamas, da qual eu nunca tinha ouvido falar. Minha mamografia estava em dia, a saúde também. Não era possível. Minha bolinha, que não era de gordura, foi classificada com grau 4, que caracteriza achados suspeitos. Procurei uma mastologista, fiz uma biópsia e o resultado foi: carcinoma invasivo de grau I. Acessei o resultado online, no quarto da Marcella, tentando fingir que não era real, mas assim que deu a hora, entrei no site do laboratório. Lembro exatamente daquele dia e horário. Era uma quinta-feira de outubro. Eu trabalhava como assessora de comunicação em um consórcio de saúde e estava justamente fazendo uma campanha de conscientização sobre a doença. Chorei muito ao ler o diagnóstico. Naquele instante, comecei a planejar a vida da minha família durante o tratamento, sem saber ao certo o que viria. A espera pelos resultados e pelo início do tratamento é angustiante. Entre os medos, o primeiro foi perder meu cabelo. Pode parecer trivial diante de algo tão grave, mas o câncer mexe profundamente com a autoestima. Decidi que, se necessário, usaria uma peruca que imitasse meu corte e cor de cabelo. Admiro e respeito as pessoas que têm câncer e mostram a cabeça ou usam lenços, mas eu realmente gostaria de não mudar minha aparência. Conheci muitas mulheres que passaram pelo mesmo, e percebi que a perda do cabelo é um dos primeiros impactos emocionais. Também tive medo de que o câncer aparecesse na outra mama. Comecei a apalpar as mamas com muita frequência, sempre imaginando que acharia alguma coisa. Um dia achei. Meu tumor era na mama direita. Apalpando a mama esquerda, percebi um carocinho e me desorientei. Fiz outra mamografia. Era um cisto. O curioso é que essa mamografia, feita depois que eu já estava diagnosticada, não mostrou o meu tumor, assim como as anteriores. A localização, apesar de fácil identificação da minha parte, porque era aparente, para o exame, era de difícil acesso. A ficha caiu e a preocupação com o cabelo diminuiu. Pensei na mortalidade e nos meses que poderiam seguir – seriam lentos ou rápidos? Tenho muita fé, e logo me senti mais tranquila. Aprendi muito sobre o câncer. Uma coisa que a gente tem que fazer depois de diagnosticado é um exame chamado Imuno-histoquímica, que explicando de forma bem simples, identifica o tipo de tumor, define o tamanho da malignidade e direciona para o tratamento adequado. Era o resultado dele que eu estava esperando enquanto pensava besteiras. Descobri que felizmente o meu tumor era o HER2, uma espécie menos grave, com maior chance de cura. Não precisei fazer quimioterapia, então não perdi os cabelos. Primeiro, eu deveria fazer a cirurgia de retirada do tumor. Não retirei a mama, só o tecido da região do tumor. Uma cirurgia bem sucedida, simples e rápida. Duas semanas depois no retorno à mastologista, veio a biópsia de tecidos retirados da cirurgia. Um deles mostrou que ficou margem, quer dizer, ficou um restinho. Voltei para o bloco cirúrgico menos de 30 dias depois da primeira cirurgia. Tudo certo com a biópsia dessa vez. As lições foram muitas: saí mais forte, resiliente e grata. Na sala de espera da radioterapia, vi pessoas enfrentando desafios maiores que os meus. Uma senhora de 83 anos, com câncer, diabetes e insuficiência renal, me inspirou com sua aceitação e coragem. Havia ali naquela sala uma atmosfera de solidariedade e respeito pela história de cada um. Uma jovem mãe, acompanhava um senhor nas sessões de radioterapia e levava o filho. O garoto era muito falante e às vezes ele me incomodava, porque é um ambiente que precisa de silêncio. Durante todo o meu tratamento ela esteve lá todos os dias acompanhando o senhor, que eu havia entendido ser seu pai. Eu a julguei algumas vezes. Não entendia porque ela levava o filho para aquele ambiente. No dia da minha última sessão, ela puxou conversa comigo e eu descobri que o senhor era um vizinho e ela se ofereceu para acompanhá-lo no tratamento porque ele vivia só, não tinha parentes. Aprendi a não julgar. A generosidade dela, levando o próprio filho por não ter com quem deixá-lo, me fez perceber o quanto as pessoas podem ser boas. Meu tratamento envolveu duas cirurgias, vinte sessões de radioterapia e medicação até este mês de dezembro. Cinco anos depois, estou curada, graças a Deus! Essa experiência me ensinou a importância do autocuidado e da atenção aos sinais do corpo. Não ignorem isso. Se posso deixar uma mensagem, é esta: cuidem-se e não hesitem em buscar ajuda médica quando algo parecer fora do comum. Fui feliz porque, mesmo tendo negligenciado
Um romance gramatical

Li recentemente o livro Latim em Pó, do escritor paranaense Caetano Galindo. Em um texto leve e muito bom de ler, Galindo fala sobre a formação da nossa Língua Portuguesa e defende a escrita informal como identidade de um povo ou a manifestação de uma realidade. Aqui no blog, eu uso um texto informal e escrevo do jeito que falo. Por exemplo: “pra”, no lugar de “para”; “tô” no lugar de “estou”; “né”, no lugar de “não é”, e por aí vai. No livro, Galindo explica que o português brasileiro surgiu do português europeu, que veio do latim, que surgiu do itálico, que por sua vez, surgiu do indo-europeu. E o latim, como muitos sabem, tem variações: latim arcaico, latim culto e latim vulgar, entre outros, mas paro por aqui pra não te cansar. Afinal, não queremos transformar este blog em uma aula de etimologia, né? O latim que deu origem ao nosso português é o latim vulgar, ou popular, porque foi trazido para o Brasil pelas camadas mais pobres da sociedade portuguesa, que se aventuraram em terra nova e estranha. Pode-se dizer que aquele latim viajou do país colonizador para o colonizado, provavelmente em uma mala de mão que nem pagou excesso de bagagem! Todas essas variações surgem de uma mesma língua-mãe, que ao longo dos tempos vai se ligando a outras línguas e daí surgem expressões e palavras que até então não existiam. O fato é que com tantas variações fica fácil explicar os desvios da nossa língua. E tudo bem que eu uso esse gostinho de latim em pó aqui, mas adianto que a norma culta deve ser respeitada na escrita formal. Afinal, não queremos que algum professor venha nos assombrar. Além disso, ministro curso de comunicação e falo da importância de seguir o padrão culto, especialmente no ambiente corporativo. Dito tudo isso, confesso que desde que li a sinopse do livro, veio à minha cabeça uma passagem engraçadíssima, que envolve o meu marido, o Fernando (este artigo antes de nome próprio também é um desvio, mas a gente usa e tá tudo bem). Agora vou narrar o tal fato. A gente ainda estava namorando e iniciamos uma discussão bastante acalorada, que agora eu não me lembro o motivo. Antes de escrever este texto, perguntei pra ele, que também não se lembra. Acho que é um daqueles mistérios da humanidade, tipo o Triângulo das Bermudas. Eu tinha uma mania, horrorosa, eu sei, de corrigir qualquer pessoa que pronunciasse uma palavra errada perto de mim. É que me doía por dentro ouvir. Em razão disso, a gente protagonizou uma cena muito nossa. No calor da discussão, o Fernando soltou um “EU TAVO”. Até que sou boa de briga, mas parei tudo e disse a ele: – Não é “tavo”. A expressão dele foi de pura surpresa, como se tivesse sido pego desprevenido no meio de um furacão verbal. Sem saber como responder, ele rebateu com a primeira coisa que lhe veio à mente: – Tá bom, “EU ESTAVO”. E foi aí que a briga perdeu toda a importância. A tensão se desfez em risos incontroláveis, transformando aquele momento em uma das nossas memórias mais queridas. Minha mania de corrigir as pessoas, que felizmente eu não tenho mais, deu origem ao nosso meme de casal. Isso já faz quase 30 anos, mas até hoje, quando alguém fala a palavra “estava” perto dele, ele “corrige” na hora. É ESTAVO! Nenhum de nós lembra porque iniciamos aquela discussão, mas nunca esquecemos como ela acabou. E agora, um livro recém-lançado me faz repensar. Será que o latim em pó ou a diversidade da nossa língua um dia vai permitir isso? Ou será que “estavo” vai ficar apenas nos meus contos familiares?
Entre sorrisos e desafios

Esta história começa em 1987, quando eu tinha 18 anos de idade e um sonho: ser jornalista profissional. Eu havia acabado de concluir o ensino médio em Diamantina, no interior de Minas Gerais, uma cidade à época, mais desenvolvida do que a minha Minas Novas, na área de educação. Como saí da casa dos meus pais muito jovem, tinha um plano para antes de entrar na universidade: ficar em casa por um semestre, até julho daquele ano, curtindo minha família, que era e ainda é preciosa demais para mim. Já estava tudo certo: um semestre inteiro de despedida de casa e, em agosto, eu iria para Belo Horizonte. Eu já me imaginava fazendo amigos e percorrendo os corredores de alguma universidade, a primeira em que fosse aprovada. Mas a vida não é tão simples, e a gente nem sempre vive exatamente como sonha. Em junho, pouco antes da mudança para Belo Horizonte, descobri que estava grávida. A notícia foi uma bomba para mim. Eu juro! Achei que meu pai fosse morrer de desgosto. Sou a única mulher entre os cinco filhos dos meus pais. Dá para imaginar que as expectativas da família sobre mim não incluíam que eu engravidasse aos 18 anos. No desespero, escondi a gravidez, mas, assim que descobriram, todos na minha família me deram muito apoio. Ao contrário do que eu imaginei, ninguém morreu de desgosto. Meu pai, aliás, está bem vivo, prestes a completar 94 anos de idade. Então, todos ficaram tristes, é claro! Mas nada além disso. Marcella nasceu aos quarenta e cinco minutos do dia 28 de março de 1988, exatamente no mesmo dia e hora em que eu nasci, com 19 anos de diferença. Coincidência? Não bastou ser no mesmo dia, foi também na mesma hora. Ela chorou muito ao nascer, e os médicos desconfiaram que algo estava errado. Fui para Belo Horizonte, não para estudar, mas para que ela fizesse exames que pudessem dar um diagnóstico preciso. Os médicos tinham razão. Havia algo errado: minha menina tinha paralisia cerebral severa. Uma tal de tetraparesia espástica, difícil de explicar. Nesse momento, eu perdi o chão. Ainda estava aprendendo a ser uma boa filha quando me tornei mãe de uma criança que precisaria de cuidados especiais por toda a vida. Começou então, ainda em abril, uma sequência de viagens, exames e entradas e saídas de consultórios médicos. Começando o tratamento Era consenso que seriam necessários tratamentos de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional por toda a vida da minha filha. Foi aí que decidi lutar e nunca desistir dela, nem de mim. Eu decidi honrar minha história e a dela. Marcella iniciou o tratamento com menos de um mês de vida. Nesse período íamos, eu e ela, todos os meses para Belo Horizonte. Quando ela completou três anos, falei com meus pais sobre meu sonho de estudar. Ali, bem dentro de mim, o desejo de ser jornalista ainda estava guardado. A essa altura você já entendeu que minha família é demais e desconfia que meus pais se ofereceram para cuidar da neta pelo tempo necessário. Aquela pessoinha já fazia parte dos meus dias, e eu sabia que sentiria muito a falta dela, mas encarei o desafio. Cheguei a Belo Horizonte e estudei muito para passar rapidamente no vestibular. Passei na PUC Minas depois de quatro meses de cursinho. Meu sonho estava acontecendo. Eu sentia saudades da Marcella e a visitava com frequência. Depois de me adaptar à faculdade e conseguir um emprego como vendedora em um shopping center, voltei à casa dos meus pais para buscar minha filha. Desde então, ela passou a morar comigo e fazer seu tratamento em Belo Horizonte, com o método de reabilitação mais avançado que existia. Eu estudava e trabalhava. Conseguia pagar pelos tratamentos e pela faculdade. Não foi fácil, e o meu maior apoio, além da minha família, veio da própria Marcella. Ela tinha muitas limitações: não andava, não falava, não enxergava. Mas ela sorria. Muito! E isso me dava força. Eu me formei em Jornalismo, fiz pós-graduação em Marketing, trabalhei em inúmeras empresas, de diversas áreas, contribuindo nos processos de comunicação e gosto demais da minha área de atuação. Valeu muito a pena ter tido coragem de enfrentar os desafios e fazer a sonhada faculdade, mesmo depois de ter me tornado mãe. Marcella sempre foi meu guia. Quando eu tinha dúvidas sobre algo, conversava com ela, que não respondia com palavras, mas com um sorriso. E isso, para mim, era um sim. A vida foi se ajeitando. Mais tarde, eu me casei. Logo tive outra filha, a Ana, e formamos uma família muito unida, com todos os problemas que uma família tem, mas com muito amor envolvido. Meu marido, Fernando, sempre tratou a Marcella como filha. Carreira Passadas mais de três décadas e depois de realizar muitos sonhos profissionais, avalio que ter sido mãe tão jovem moldou a minha visão de mundo. Trabalhei para conciliar a carreira com a maternidade e deu muito certo. Em 30 anos de carreira, passei por inúmeras empresas e, em nenhuma delas, fiz entrevista de emprego ou qualquer tipo de teste. Sempre fui referenciada por pessoas que gostavam do meu trabalho. Soa arrogante, não é mesmo? Mas não é nada disso. É muito tempo de estrada e tenho erros e acertos, mas é bom ser lembrada mais pelos acertos, em minha opinião. Aprendi a me posicionar quando me vi convivendo com médicos renomados e experientes. Eu precisava entender tudo para cuidar da Marcella, e, quando me formei, já não era mais aquela menina que se tornou mãe. Eu tinha uma postura profissional e construí uma carreira pautada no compromisso com as pessoas. Quando ela se foi Minha Marcella foi morar no céu em junho de 2022, aos 34 anos. Ela morreu em paz, como viveu. Sofri tanto que não consigo descrever. A dor está dando lugar à saudade. Lembro dela todos os dias. Todos! E sou imensamente grata pela oportunidade de ser mãe de um anjo, de fazer a jornada ao lado