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Criada entre dois rios

Há um cheiro que nunca saiu de mim: mistura de terra molhada depois da chuva, brisa de eucalipto que chegava com o vento, anunciando o início do dia e aquele aroma doce das águas do rio Fanado, que marcou a minha infância e a de quem viveu em Minas Novas, cidade que eu tomei como minha. Quando eu e minha família nos mudamos pra lá eu tinha seis anos de idade e logo descobri que rios não são só água — são histórias vivas que nos fazem nadar na memória.

Minas Novas tinha dois rios que brigavam por nossa atenção: o Fanado e o Bom Sucesso. Eles ainda existem, mas não como antes, não como a minha memória registrou. O Fanado era nosso parque de diversões diário — águas quase sempre rasas onde dava pra ver as pedrinhas coloridas no fundo e as piabas fugindo dos nossos pés descalços. O Bom Sucesso era mais sério; os adultos diziam que era perigoso e sempre tinha histórias de gente que se afogou por lá. Mesmo assim existia um lugar mágico: o Poço do Encontro, onde as águas se misturavam, levando consigo um pedacinho do que cada um de nós vivia naqueles momentos divertidos.

Naquela época ninguém precisava de relógio: sabíamos que o dia estava acabando quando o sol começava a bater nas pedras mais altas do rio ou quando chegava a notícia de alguma mãe chamando pelo filho. São muitas as cenas que me vêm agora como o futebol dos meninos na prainha, debaixo da ponte ou a descida até o “Encontro” em uma grande boia (câmara de ar de algum caminhão) que abrigava várias crianças entre risos e cutucões em busca de um bom espaço. E as disputas pra saber quem ficava mais tempo dentro da água…

E tinha os domingos que inúmeras vezes eram dias sagrados porque íamos passar horas à beira do Fanado com toda a família. Minha mãe levava panelas velhas e improvisava um fogão em cima das pedras lisas da barragem. Enquanto ela preparava o almoço nós corríamos para brincar e nadar até cansar as pernas. A regra era clara: nadávamos antes de comer porque depois do almoço era proibido entrar na água (“faz mal”, diziam). Então aproveitávamos cada minuto até os dedos ficarem enrugados e os lábios roxos de frio… mesmo no calor de 35 graus!

Ainda lembro do cheiro daquele almoço: feijão, frango caipira – que chegava semi-pronto  – e arroz empapado, tudo colocado no prato de metal meio amassado, aquele cheirinho de fumaça que eu ainda consigo sentir…

O Poço do Encontro era nosso lugar secreto — íamos lá poucas vezes por ano porque ficava mais longe e exigia permissão dos pais (que raramente davam). Quando conseguíamos chegar até ele por conta própria? Era uma aventura digna dos livros! Ali as águas eram um pouco mais profundas,a gente se apoiava nas pedras e sentia as correntezas puxando levemente nossos pés. Não tínhamos medo; éramos donos daquele mundo aquático onde nada podia dar errado… ou pelo menos era isso que pensávamos entre gargalhadas molhadas!

Os anos passaram num piscar de olhos… Hoje volto às margens do Fanado adulta mas ainda com os mesmos dedinhos ansiosos por mergulhar numa infância guardada em caixinhas especiais na memória… Só que algo mudou: onde antes havia água cristalina cobrindo minhas pernas agora há apenas filetes rasos correndo preguiçosamente entre pedras cobertas de alguma sujeira esverdeada… O Bom Sucesso quase secou também; quando chove e os rios se enchem as águas transbordam, mas são impróprias pra banho. As pessoas ainda vão ao rio, algumas ainda arriscam fazer uma comida de domingo na barragem, mas as crianças não frequentam mais o rio, como se fosse o quintal de casa.

Hoje percebo algo lindo: esses rios podem estar secando na realidade mas dentro de mim continuam transbordando vida como sempre fizeram desde meu primeiro mergulho.

Minha história com Minas Novas não cabe em palavras simples… Ela tem gosto de feijão mal cozido feito numa panela torta ao ar livre; tem textura áspera das pedras onde sentei tantas vezes pra secar ao sol depois dos banhos… E acima disso tudo tem amor – muito amor – por um lugar onde aprendi ser pequena diante da grandiosidade da natureza mas imensamente feliz com tão pouco além dum rio generoso me ensinando flutuar nas correntezas da vida…

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