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Marcella e o fotógrafo

Durante toda a vida, Marcella enfrentou dificuldades devido à sua deficiência. Como já mencionei em artigos anteriores, ela tinha paralisia cerebral e viveu por 34 anos, superando muitas limitações. Nos anos 1980, quando ela nasceu, as barreiras de acessibilidade eram ainda mais desafiadoras do que as de hoje, e o preconceito fazia parte do nosso cotidiano. Naquela época, era comum que pessoas na condição dela fossem escondidas por suas próprias famílias. Nunca entendi o porquê. Ao contrário, sempre acreditei na importância de Marcella estar presente, visível e incluída.

Marcella não andava, não falava, e sua capacidade cognitiva era considerada baixa. Mas aqueles que verdadeiramente conheciam sua essência percebiam que ela tinha uma audição aguçada e prestava atenção nas conversas ao seu redor. Ela não enxergava, mas sentia, de alguma forma, a reação das pessoas. Sempre que a apresentava a alguém, ela retribuía o cumprimento à sua maneira: se fosse acolhedor e genuíno, ela sorria; se houvesse estranheza ou resistência, ela reagia com incômodo e rigidez muscular.

Lembro-me de um episódio emblemático e, de certa forma, engraçado. Um fotógrafo bateu à nossa porta oferecendo ensaios fotográficos de crianças, uma prática comum naqueles tempos. Ao saber que havia uma criança em casa, ele veio rapidamente, como quem acha uma mina de ouro. Quando trouxe Marcella à sala, sua animação rapidamente se transformou em espanto. Parecia que ele havia encontrado algo muito espantoso na sala de estar. Ele queria que ela se encaixasse em um padrão de “normalidade” que simplesmente não era possível para ela.

Quando ele perguntou se havia outra criança, a filha da cuidadora de Marcella, Isabel, que morava conosco, entrou na sala. Seus olhos brilharam, mas eu insisti: o ensaio seria da Marcella. Isabel poderia participar, mas o foco deveria ser minha filha. Desanimado, ele continuou a fotografar, mas sua decepção era evidente, e Marcella, percebendo isso, decidiu que era hora de mostrar seu talento. Ela não cooperou, resmungou, caiu para o lado, salivou – talvez sua maneira de dizer: “Se você não pode me aceitar como sou, eu também não vou facilitar seu trabalho!”

Isabel entrou em cena e, por um momento, Marcella se animou, mas a tensão permaneceu no ar. O fotógrafo prometeu ligar em 15 dias para a entrega das fotos, mas 30 anos se passaram e ele nunca o fez. Talvez ele ainda esteja esperando que Marcella envie um cartão postal com suas fotos “não convencionais”.

Esse episódio permanece vivo em minha memória, como um dos muitos momentos em que tive que lutar para garantir que Marcella fosse tratada com o respeito e a dignidade que ela merecia. Eu me tornava uma leoa nesses momentos, defendendo-a com todas as forças. Marcella, por sua vez, surpreendia ao vencer suas limitações e demonstrar seu próprio incômodo com essas situações. No final, essas histórias nos faziam rir, e meus irmãos mais novos, que moravam conosco em Belo Horizonte, compartilhavam dessas risadas e da evolução da sobrinha.

Nesta época de Natal, quando refletimos sobre o que realmente importa, lembro-me de como Marcella nos ensinou a encarar a vida com leveza e humor, mesmo nas situações mais complicadas. Afinal, como ela nos mostrou, às vezes a melhor defesa é um bom e velho sorriso travesso.

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Vera Lúcia Machado Lopes
Vera Lúcia Machado Lopes
30 dias atrás

Emocionei… Encantada com tanta clareza e amor. E ela foi muito amada mesmo.

Ana Machado
Ana Machado
30 dias atrás

Lindo!